" Misticismo "
Teu amor me transformou num crente, eu que tinha
a alma arejada e clara
como os descampados batidos de sol ...
Habituaste-me aos meios-tons das tuas súplicas e
das tuas palavras murmuradas
à penumbra envolvente dos teus êxtases de humildade
e oferecimento
ao perfume morno de incenso das tuas carícias
de pelúcia angorá...
E eu me ajoelho diante do teu corpo belo, do teu corpo branco
porque ele é o meu altar,
acendo a chama vermelha do Desejo nos castiçais
quentes, de carne
dos teus seios nus,
e recebo do cálice entreaberto dos teus lábios puros a
hóstia do grande amor!
Teu amor encheu meus sentidos de crepúsculos santos
e místicos
eu rezo todas as noites no altar branco do teu corpo
oração profana da Vida e do Desejo!
Benditos aqueles que podem orar como eu, no catecismo
vivo dos teus cinco sentidos
os cinco mandamentos que os deuses quiseram desconhecer
e que valem no entanto muito mais que os dez...
Agora eu aprendi a rezar. E encho os teus ouvidos de
preces ansiosas
e palavras suaves...
Ao nosso lado então, tudo é vazio, é longínquo, é enorme,
quando os nossos corpos se unem
se confundem
como os feixes de luz que se cruzam na sombra,
no interior sonâmbulo das naves. ..
Na minha religião, que é a tua religião
eu sou o único deus,
não há santos, nem impostores, nem missais solenes, de
litúrgico esplendor...
No altar branco do teu corpo, entre as chamas rubras do
Desejo
eu sou o Senhor !
Teu amor me transformou num místico, eu que tinha a
alma arejada e clara
como os descampados batidos de sol...
Porque antes, eu queria mulheres nuas correndo por
entre matas e alfombras,
queria meu teto na curva do céu !
queria meu leito na terra do chão!
Meu Desejo era um fauno livre e erótico
num templo pagão...
Hoje, fujo da luz do dia, dos descampados indiscretos,
das ruas cheias
Já não quero o leito pagão de todos os homens
onde pisam todos os caminhos
onde pousam todos os olhares...
Quero o teu misticismo acariciante, a tua sombra que
tem gestos envolventes
sinto-me bem na penumbra roxa do nosso aconchego
no mundo escondido do nosso leito,
quando os teus olhos são como dois vitrais iluminados e
cheios de lendas
e o meu Desejo é a chama tremula que acendo sempre
em devoção
aos meus pecados...
Hoje eu não sou pagão, hoje eu já sei rezar para os teus ouvidos
uma doce ave-maria:
"Ave Maria
cheia de graças
com dois seios brancos como duas luas caídas do céu,
o Senhor é convosco porque eu sou o vosso único Senhor,
bendita sois vós
entre todas as mulheres, e porque me quereis,
bendito é o fruto do vosso ventre e do nosso amor,
e mil vezes bendita porque vos adoro
um segundo, talvez..."
Benditos aqueles que fogem da luz onde todos os olhos
são cegos e todos os passos incertos
para a sombra acolhedora de um pouso onde há uma
árvore farta de ramaria
cheia de música e poesia
para o nosso ouvido deslumbrado,
e traz no ramo que pende o fruto doce e maduro do
grande pecado...
Por ele viveremos e sofreremos livres,
por ele canto e me exalto nestes versos meus,
longe de insipidez do Paraíso, onde éramos demais
porque já havia um deus...
Benditos os que tomam o hábito da divindade quando
encontram os mandamentos
da Vida,
e podem orar como eu, no catecismo vivo dos teus
cinco sentidos
uma ave-maria
para cada Noite
para cada Dia!
( Poema de JG de Araujo Jorge extraído do livro
"Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou"
Vol. I - 1a edição 1965 )
Coletei mais um poema fabuloso deste grande poeta, onde ele brinca seriamente com as palavras, num tom solene, porém envolto numa aura de misticismo.
J.G. sabe muito propriamente transmitir sentimento em forma de palavras e nos faz mergulhar no seu mundo todo particular.
Apenas curto seus sonhos como se meus fossem.
Consumam como se degustassem um bom vinho.